RAZÃO DE NACIONALIDADE

Como se sabe pela imprensa, tem-se vindo a acentuar a questão da nacionalidade não só dos chineses com passaporte português, mas também dos macaenses, que a permanecerem em Macau, serão considerados, em alguns casos, chineses.
Na longa e contínua evolução desse grande país que é a China, desde a primeira unificação por Qin Shihuang até à implantação da República, e depois, à implantação da República Popular da China, nunca se assistiu a uma mutação tão rápida como nos últimos 20 anos. Mudanças não só epidérmicas, no sentido da evolução qualitativa da estrutura, como revela a recente evolução de mais de 20 Ministérios, mudança que augura outras tantas a acontecer, como aquelas que conduzem a outras que se adivinham. Curiosamente, a China vem consumar Camões quando este escreveu que todo o mundo é composto de mudança.
Nesta quase contínua coerência da estrutura de poder desde a primeira unificação do Império do Meio, sempre houve uma demarcação da cultura chinesa e dos chineses face a outros povos,denominados de bárbaros, o que não é único, já que a Ocidente, também os Romanos o fizeram.
Tem toda esta elaboração a ver, regressando à origem do tema, com a característica da China, no passado, de absorver corpos estranhos, geralmente nómadas, como mongóis e manchus, transformando-os em chineses.
Contudo, no patamar do século XXI, e perante uma Declaração Conjunta que é um Acordo - porque os desacordos se não assinam - não só essa característica já não é aplicável, não apenas pelo sedentarismo do macaense, no caso vertente, como os tempos, discursos e circunstâncias são outros.
Por isso, é essencial a percepção de que a nacionalidade já não poderá mais ser entendida à luz do direito internacional, nem do local de nascimento, sem atentar contra a natureza intrínseca do indivíduo e da sua Memória. Porque, quer a Nacionalidade quer a Cidadania não são obrigações nem imposições, mas direitos, precisamente porque o que informa a noção de Pátria, de Nacionalidade e de Cidadania é toda a estrutura cultural do indivíduo. Não sendo possível fazer regredir a História, o macaense ou, como agora se usa, o luso-descendente, não é chinês. Muito menos em termos culturais específicos.
Não ser chinês, porém, não significa uma ausência de convívio ou de permuta cultural, da qual o macaense foi e é o protagonista por excelência. Não ser chinês é tanto uma circunstância como ser português. Não ser chinês não significa uma exclusão, nem sequer uma opção. A Nacionalidade, e a noção de Pátria, são conceitos que se não decretam - onde não há soberania possível - antes incorporam a estrutura referencial mais elementar do indivíduo, e se situam a um nível que o povo chinês bem conhece, tantos os casos de patriotismo que a sua História regista ao longos dos milénios.
Não invalida o que disse, o facto de os chineses adoptarem a nacionalidade inglesa, americana ou qualquer outra. A sua estrutura cultural mantém-se. As China Towns são disso mais que evidência. O que paradoxalmente abona em favor do outro conceito de nacionalidade de que se vem falando. Aquele em que a espiritualidade e a estrutura cultural presidem. Essa é a verdadeira nacionalidade do indivíduo.
Noutros termos: não é por um chinês beber Coca-Cola que deixa de ser chinês, nem por ter sido, sob os Qing, obrigado a usar meia cabeça rapada e trança, que o chinês Han deixou de ser chinês.
A diversidade sempre foi uma componente enriquecedora. Por isso a uniformização da diversidade é a anulação da riqueza das diversas miscigenações, é a negação da própria globalização inevitável, que quer Portugal quer a R.P. da China terão de enfrentar, cada país à sua maneira.
É, enfim, a negação da essência mais profunda do próprio Estatuto da Região Autónoma Especial de Macau. A manutenção da diferença consubstanciada pelo postulado de Um País dois Sistemas só pode confirmar-se na diferença da própria diferença. Isto é, na diversidade activa.

Tal como na cosmopolita Chang An, onde aportavam os cameleiros árabes, muçulmanos, judeus, raças e crenças em constante diálogo e permuta. Porque é na troca, na permuta, que está a riqueza.

Politicamente não constituirá para ninguém uma vitória, se vingar o conceito de que os macaenses serão chineses. Será antes uma derrota para todos. Para a parte portuguesa, por impotência de fazer vingar a sua posição. Para a parte chinesa também, que assim anuncia a sua indisponibilidade em aceitar a diferença da espiritualidade da Pátria do Outro. Está é uma soberania que - por ser espiritual - não poderá ser exercida como atrás se disse. Pelo contrário, reconhecer no macaense o português asiático que é, constituirá, isso sim, um elogio à própria dimensão visionária que Deng Xiao Ping formulou com tanta felicidade no já aludido conceito Um País dois Sistemas.

Como dizia António Aleixo, a razão mesmo vencida, não deixa de ser razão. E sendo vencida, poderá ocorrer, eventualmente, uma emigração massiva que - a acontecer - irá nulificar, por inaplicabilidade decorrente da falta de Quorum, a própria Região Administrativa de Macau, tornando-a mais uma elaboração conceptual que uma realidade. Porque a realidade é, de facto, a diversidade.

Tem a China a sabedoria suficiente para entender e ponderar estas e outras premissas. Sou disso testemunha, e estou convicto que tudo se resolverá a bem das duas partes. Muito se passa nos corredores diplomáticos e políticos que o cidadão desconhecerá. Mas é no que transparece que se forma a opinião pública, e amabas as partes deverão sabê-lo melhor do que eu.

Dependerá muito o acesso da República Popular da China e a sua incorporação numa cultura global - que se aproxima galopantemente - das decisões que agora tomar. Não repugnará a nenhum país aceder à cidadania do mundo, sabendo para tal preservar as suas singularidades e encontrar as zonas de comunicabilidade. É esse o futuro que se avizinha e que nenhum poder pode fazer parar.

E Macau, com todas as suas potencialidades de conjugação da atriz Greco-Latina com as culturas Orientais, é uma diferença que constitui desde logo uma valorização para a China, que sabe isso e sem dúvida deixará Macau cumprir-se como laboratório participado, lugar único no mundo, lugar de permuta. Nisto difere a riqueza de Macau da outra riquesza - essa fundamentalmente financeira - de Hong Kong.


CULTURA E SÉCULO XXI

A talhe de foice vem esta associação. Terminadas as experiências marxistas, as ideologias desvanecem-se na sua quase totalidade. A Cultura do Século XXI adivinha-se informada por outras verdades, hoje ainda rejeitadas porque mal conhecidas, e que serão assentes, não só em conceitos renovados, como na interdisciplinaridade activa entre cultura, tecnologia e comunicação.

Do telegrama ao telex foi uma eternidade. Do telex ao fax reduziu-se essa eternidade, e do fax ao email foi o tempo de um fósforo.

Neste patamar em que estamos, já não é possível trabalhar, pensar ou criar solitariamente. Em todos os tempos, sempre foi o imediatismo um erro histórico, e esse não é, decididamente o conjunto de sinais que a China transmite.

Haverá que intuír, e desde já elaborar novas éticas, novos conceitos, entre os quais o de Cidade, Cidadania e mesmo de Nacionalidade, perante o futuro que já chegou, com todo o seu manancial de informação.

Dir-se-ia que em 10 anos se recuperou toda a informação de todos os livros queimados, e todos os manuscritos desaparecidos de todos os lugares do planeta. Metaforicamente falando, claro.

Já nasceu, porém, discreta ainda, uma nova ordem, à espera das gerações futuras. Uma nova ordem que muitos de nós repudiaremos, tanto quanto ela nos assusta, pelo conceito de humanismo que hoje temos.

Júlio Verne esgotou-se, nesta nova tipificação de futuro.

Contudo, não podendo ainda conjugar tais futuros, resta aos portugueses em Macau, repensarem, se ainda o quiserem, o próprio conceito de Cidade. É que o reforço da diferença reside precisamente no útero que é a circunstância. Cidade matricialmente portuguesa, Macau terá, por elevadas razões onde a ética presidirá, de ser encarada não como uma enorme roleta ou um grande trottoir envergonhado, mas sim como uma cidade humanizada que a recente afirmação de Sales Marques, de que há um metro quadrado de zona verde por habitante, vem dar alguma esperança.

Lugar de saberes e sabedorias várias, a Cidade requer um reordenamento compatível com a sua matriz, com a sua Memória Colectiva, com a sua história, o seu carácter, vocação e identidade.

Reproduzir com inteligência a cidade lúdica e educadora, emular a China - não há mal emcopiar o que entendermos correcto, porque assim é o espírito da aprendizagem - no redimensionamento do já enorme aparelho administrativo em direcção à síntese, na disciplina da vida da urbe, na instituição do convite para a percepção do cidadão perante Cidade e Cidadania responsável.

Tal conjunto de medidas passariam necessariamente pela devolução da cidade, por inteiro, aos cidadãos.

Reflexões que ficam para outra intervenção, no exercício continuado do direito da Cidadania e da Nacionalidade, informada por uma cultura específica e por uma condição: a de macaense, português asiático. E que assim possa ser. 

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