A DESERTIFICAÇÃO

 A milenar China dos Tang e dos Sung, já foi palco e destino cosmopolita, acolhendo nas suas principais cidades, caravanas de mercadores persas e árabes, monges nestorianos, muçulmanos e judeus, uns demandando a seda, outros buscando espalhar a sua fé.


Não é pois de hoje a relação da China com o mundo exterior. Não é de hoje a adopção do Budismo, originário da Índia, nem o seu entrosamento com o Taoísmo e o Confucionismo, numa tolerância religiosa talvez única, segundo os parâmetros ocidentais.


Não tivesse o imperador Ming ordenado que o almirante Zheng He deixasse de navegar e arrumasse a sua formidável frota, setenta anos antes de Vasco da Gama chegar à Índia, e o encontro primeiro ter-se-ia dado em África.


Mas atravessemos Tempo e História para aportarmos à realidade actual de um período de Transição em Macau, da Declaração Conjunta, da Lei Básica, e a candente questão da nacionalidade dos Macaenses.


Sabe-se que cada país tem a sua legítima visão da nacionalidade. Portugal tem uma abrangência sobre a nacionalidade díspar da da China, o que, como se disse, é natural.


Contudo, se a jurisprudência sempre teve interpretações díspares dentro de um próprio regime, não espantará pois que em dois regimes mais se acentuem as divergências. O que espanta porém, é que o assunto tenha passado - segundo anuncia a imprensa – para o âmbito da Comissão Preparatória, onde não pontificam juristas chineses, tanto quanto se sabe.


A questão - adivinha-se - prende-se aos portadores de passaporte português de origem chinesa e, por arrastamento inevitável, aos macaenses no sentido mais tradicional e étnico do termo.


O SÁBIO PRINCÍPIO DA TOLERÂNCIA

Se aos primeiros é facultada pelo Governo Português a fixação de residência em Portugal antes de 19 de Dezembro de 1999, por opção dos mesmos, provocando muito provavelmente alguma debandada de agentes económicos pouco dispostos a abdicar do seu passaporte português, por razões que serão meramente pessoais, já a questão da nacionalidade dos macaenses, luso-falantes, e de matriz cultural portuguesa, a questão torna-se deveras preocupante, na medida em que se sabe que a Composição da Comissão Preparatória é esmagadoramente chinesa, destituíndo assim uma discussão de carácter eminentemente técnico, de interlocutores especializados, pois a nacionalidade é matéria de forum jurídico-constitucional.


Ora acontece que quando a República Popular da China se deu a si mesma cinquenta anos para se aproximar dos padrões internacionais, quaisquer medidas que neguem essa caminhada, que - como qualquer outra - começa com o primeiro passo, está a proceder a uma regressão, sobretudo porque se admite que Macau seja mesmo uma Região Administrativa Especial.


Daí que a etnia lusófona dos macaenses tenha de ser encarada por todas as instâncias chinesas à luz das excepções que confirmam a regra. Porque de tal se trata de facto, de uma excepção, ou, melhor dizendo, de uma encruzilhada genética da História. E à História deve-se a maior das obediências e a aplicação do sábio princípio da tolerância que, segundo a História indicia, deve ter sido inventada na China.


É pois no princípio da tolerância e do entendimento da diferença que deverá ser por todos encarada a origem dos macaenses e o seu portuguesismo. Tal em nada desfavorece nem os macaenses, que não devem ser sujeitos à opção de nacionalidade pela simples razão de que não se opta pelo que já se é. Difícil será a compreensão desta singularidade de se ser português asiático, se para ela existir o olhar do preconceito, prefixo do conceito que se desejaria inexistente pelo juízo que comporta, onde juízo não pode haver. Apenas reconhecimento de uma realidade incontornável.


OS SISTEMAS DO PAÍS UNO

Brilhante foi a estratégia de Deng Xiao Ping para o desenvolvimento da China, através da criação da Economia Socialista de Mercado e do Princípio um País dois Sistemas, medida inteligentíssima e de grande visão que lançou o país num processo de recuperação que se não compadece com desandamentos.


A questão que se põe é a de continuar uma fórmula até agora praticada: o consenso pragmático.


É que a alternativa ao pragmatismo e à visão de Deng é, necessariamente, o fundamentalismo maniqueísta, invoque-se o que se invocar. O que traz sempre consequências, num momento em que as partes deveriam colaborar construtivamente para o bem de Macau e das suas gentes, e para a manutenção da identidade única de Macau.


Ao visionar os dois Sistemas, Deng estabeleceu a diferença para chegar à igualdade. Anular a diferença exigindo aos macaenses que optem, será desaconselhável para a própria China, tanto quanto seria para Portugal se a situação fosse inversa. Ver-se-ia obrigada a constatar que os macaenses não abdicariam de sua nacionalidade, o que seria uma provação desnecessária dentro dos dois sistemas instituídos. E traria talvez, como consequência, a provável nulificação da futura Região Administrativa Especial de Macau pela eventualidade de uma desertificação maciça da comunidade macaense, afinal aquela que estabelece a diferença.


Ao inventor das culpas faltou dizer que a havê-las, elas não são monopólio de ninguém.


Sobretudo quando se caminha para uma Economia Plena de Mercado.


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