DA CEGUEIRA

Muito se tem falado, dito e escrito sobre a cegueira.


Em termos do Novo Testamento diz Cristo que não há pior cego que aquele que não quer ver.

Buda, por seu lado fala nas ilusões da realidade.Ou seja, na cegueira da essência.

Recordo também os livros de Pomar, Da Cegueira dos Pintores, e de Saramago, Ensaio sobre a Cegueira.


Em todas as culturas a cegueira, sendo uma adversidade física, constitui, curiosamente, uma vantagem. Na China e em Macau, os cegos chineses exercem a função de intermediários entre o ontem, o amanhã, e outros mundos, manipulando de cor as moedinhas do I-Qing ou Livro das Transmutações.


Tem a cegueira de Ray Charles, José Feliciano, e mais recentemente, de Andrea Bocelli, entre outros, a capacidade de transmitir uma outra visão para além do mecânico acto óptico.


A cegueira física é a visão plena, porquanto nós, os que fisicamente vemos, nem sempre nos apercebemos da visão dos sentidos todos.


Convencionou-se chamar aos cegos de invisuais, eufemismo deveras infeliz pela tentativa de amenização do termo. De facto, contornar a palavra cego é como que estabelecer para com esta um libelo, que acarreta por seu lado, por oposição, àqueles que fisicamente vêm, um outro. O de verem. Preferiria chamar-lhes sem compaixão nem dó, de transvisuais. Porque o são. E nisso levam-nos a palma, ou a vista, a nós que temos a faculdade mecânica de ver.


O transvisual ­ chamemos-lhe pois assim ­ não é senão apenas intuível por todos os que o não são. Sobretudo para aqueles a quem ver é apenas função optométrica.


No transvisual - mesmo para o de nascença ­ há muito que se instalou o virtual no horizonte dito negro dos seus olhos, negrume igual ao do universo, onde pontificam milhões de mundos. Estando tão próximos da Via Láctea ou da constelação de Centauro, estarão mais próximos do divino, donde se concluiu que o seu olhar se aproxima da origem de tudo, ou do nada.


Não vendo, o seu fácies é o pleno espelho da alma. Veja-se Ray Charles ou José Feliciano. Nenhum deles detém, por isso, as defesas da ocultação, da alegria hipócrita de quem, vendo-se como Narciso no lago de mercúrio de um espelho, aprendeu a arte do mimetismo social.


DA VISÃO

Não sendo contudo a visão o mero acto mecânico de olhar, ocorre-me à memória a invenção do Cubismo por Picasso, inspirado nas máscaras africanas e na inteligência da interpretação do real que estas lhe suscitaram. Não tendo feito cubos mas sim percebido a relação entre a visão mecânica, o que se vê, e a visão inteligente, aquilo que se sabe que existe, Pablo Ruiz Picasso inovou entrosando as duas numa só, aquilo que hoje se faz em fotografia ou cinema sob a designação de sobreposições.


Mas na visão radica o visionário, aquele que como Saulo, precisou de cegar numa luz ofuscante, para poder ver.


Não há assim, de facto, maior cego que aquele que não quer ver. E nesta milenar verdade cabe a história do rei que vai nu. Donde se infere que ver é, também, um acto de coragem e de liberdade, daquela que Fernando Pessoa descreveu: nasci e prenderam-me. Ah, mas eu fugi!...


Retomando a temática visionária, acredito plenamente que a visão constitui a síntese, o culminar de um processo de busca e de reflexão, de inquietação perante situações aparentemente insolúveis, ou que não satisfazem aquele que medita. Visionar é, enfim, colocar no hoje o Eureka que se irá inevitavelmente cumprir amanhã.


E neste campo visionário cabe também a visão política, exemplo dado pela Comissão Preparatória ao considerar localizáveis todos quantos residam em Macau há mais de sete anos. Não será, tanto quanto pode aparentar, uma mera redundância. É um acto de generosidade e justiça cívica, denotando pleno entendimento do conceito de Cidadania e de globalização da mesma. Isto é, cada cidadão tem uma contribuição a dar, e para que possa ser dada, independentemente de raça, nacionalidade ou credo, terá de aceder à plenitude da cidadania.


Ora em meu modesto entender, ainda que o processo de Transição comporte sempre opções administrativas, com vista à configuração de um horizonte ou cenário, há que entender que a Transição é isso mesmo, uma transitoriedade, uma transferência, um período de excepção que, por o ser, deveria conter medidas mais extensas e abrangentes que não cabe aqui referir, por tardias.


Mas, dizendo o povo que não vale a pena chorar sobre o leite derramado, importa dar à História a haver, o seu lugar. Isto é, registar e reflectir sobre esta visão da Comissão Preparatória que parece indicar, à superfície ­ e deseja-se que também em profundidade ­ a não existência de exclusões.


Isto é, espera-se que o único princípio de selecção a vigorar seja o princípio da competência para uma sociedade que deve estar preparada para o século XXI. Porque visionar comporta exactamente a percepção de que, sendo cada indivíduo inigualável pela sua individualidade, é na selecção dos melhores em detrimento dos mais amigos que se terá de construír a cidadania do século XXI, pouco dada, já hoje, às adversidades colectivas da discriminação. Porque é na visão que assenta a percepção de todas as sinergias, de todas as abrangências, que permitem que os poderes, sem exclusões discriminatórias, abracem e apoiem ideias e ideais de valorização e bem comuns. É este um dos pontos de partida para a concretização real da palavra e do conceito de desenvolvimento.


Neste contexto ressalta um princípio que todos os políticos deveriam ter a capacidade de percepcionar. É que nenhuma realidade é o que parece. É, antes de mais, apenas uma aparência da mesma. Sendo dela mera aparência, haverá sempre e inevitavelmente uma outra face, porque o todo é composto pelas partes. Chamemos-lhes milenarmente de Yin e Yang.


Ora ao político importa saber ver a pedagogia da diferença, possuír o esclarecimento que lhe permita ter a clareza de saber dialogar com todos, de igual para igual, porque, uma cidadania plena não é uma relação de deferências. É uma relação de inteligências. Perceber-se-á finalmente da dimensão do político pela sua capacidade de arrastamento de massas, pela sua capacidade de convencer, pela sua capacidade de confraternizar. Porque, tendo todo o poder um fim, descobrir-se-á, dolorosamente, que a solidão esteve sempre lá, escondida pelo frou-frou das mesuras e das adulações, entretanto transformadas em meras recordações, tantas quantas os retratos sonolentamente pendurados e esquecidos, a confirmar o ditado do rei posto.


É que só nos podemos cumprir na verdade, e numa visão sólida e flexível, ampla e generosa, cheia de dúvidas e incertezas, porque humanizante e humanizadora, e num pensamento que acolha outros, e deles retire matéria de reflexão que permita inovar, porque é na contaminação de ideias que o pensamento se desenvolve, sem nunca se esgotar. Porque a obra que se deixa nunca é a que se vê, mas a que se vive.


O apego ao Poder e a sua embriaguez, é a pior das ilusões, desde o Homo Sapiens até Nero, passando por César e continuando num interminável préstito de ilusões de eternidades.


A existência é deveras preciosa para que seja desperdiçada em ilusões quase pueris. Porque à ilusão sucede necessariamente a desilusão. Na transitoriedade do ser, é preciso por vezes, proceder ao humilde exercício da cegueira para se poder ver com clareza. E, dessa nova visão, olhar em redor e para o futuro. Porque sempre tivemos dúvidas, e raramente acertamos.


Por isso, nunca foi tão claro aos meus olhos, neste exercício da cegueira, o ditado do cego: A ver vamos

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