ENCONTROS E NOVAS CIDADANIAS

Nesta segunda metade de um húmido mês de Março do ano de 1999, com a presença do Presidente da República, Jorge Sampaio, ir-se-ão inaugurar os últimos feitos arquitectónicos sob administração portuguesa e celebrar o reencontro daqueles que são os representantes dos primeiros feitos genéticos da presença portuguesa nestas paragens.


Entre a solidez da pedra ou do cimento e a ductibilidade dos genes, irão transcorrer estes dias remanescentes do mês de Marte, que o calendário gregoriano dedica à Quaresma.


Pela última vez à sombra de uma manifesta presença portuguesa, concentram-se em Macau para cima de mil representantes da diáspora, procurando o reencontro com os que ficaram, reencontro que se ficará em número, aquém do desejável, habituados ao Forum, invalidando pela dimensão do local, que muitos dos macaenses que aqui vivem e que necessariamente mais sentem a transição, assistam e participem, permitindo saudável debate e esclarecimento de ideias entre todos, sabendo-se que se para uns a preocupação será a de como assegurar apoios para as suas Casas de Macau, para outros será o exercício da natural angústia que absorverá o quotidiano de muitos.


Constituindo contudo o formalismo sobretudo uma inibição do acto de relacionamento, não será esquiva à profundidade das questões, aguardando-se com muito interesse o teor da comunicação do Presidente da República Portuguesa.


Continua a vida o seu ciclo, composto agora de mudança para a qual estarão menos preparados os mais tradicionalistas, apegados a um tempo que já não existe, como uma bandeira cujas oscilações ao vento impedem a leitura da evolução, que tem um nome necessário: Cidadania.


Se na Revolução Francesa o termo Cidadão foi por demais usado, o século que aí vem, a renovar o Tempo e muitas das verdades que lhe estão inerentes, levanta e suscita questões de Novas Cidadanias de que a miscigenação genética e a capacidade de conjugação cultural do macaense são precurssoras.


Gostaria de citar um Amigo que muito prezo, quando diz numa sua preciosa e importante comunicação, que a União Europeia caminha para o conceito de Nação de Nações, o que constitui o prenúncio óbvio de nova forma organizacional dos Estados, reflectindo-se por simpatia ou contaminação, nas cidades e nos cidadãos.


De facto, a constituição de blocos económicos por proximidade geográfica - a União Europeia, a Asean, o NAFTA - vem trazer perante o palco da História a inevitabilidade de se estar perante a génese da tão procurada unificação da Humanidade.


Com efeito, quando a Europa mais rica acolhe um intenso trânsito migratório oriundo da África, do Médio-Oriente, de algum Oriente e alguma Europa Mediterrânica, fruto não só da falta de mão-de-obra disponível como de uma maior democratização dos transportes, estão franqueadas as portas também à migração e remiscigenação genéticas, destruíndo os conceitos hegemónicos da raça exaltada no Mein Kampf.


Assim, enquanto a Europa do novo século se prepara para se defrontar com uma nova e incontornável realidade constituída pelos novos cidadãos decorrentes das aludidas mestiçagens genéticas, anuncia-se pois, como resultado - um pouco por todo lado, depois da queda das ideologias - a queda dos monogenes e dos conceitos sobre estes construídos, num momento em que a Comunicação e a Informação se tornam intensamente democratizadas e mediáticas pela disseminação das tecnologias, e a fruição do desenvolvimento económico passa lentamente também, pela mesma via, a romper as barreiras do privilégio.


Este sentido da História, traçado cada vez mais pelos neo-filósofos, pelas novas tecnologias e metodologias de saberes, pelos exemplos da comunicação e informação, irão provocar a emergência de novos conceitos políticos e culturais decorrentes da antiquíssima corrida pela supremacia tecnológica, começada com a primeira faísca artificialmente criada.


Um novo século que vem, sucedendo-se ao mais veloz século da história de toda a humanidade, e prometendo em carteira, numa velocidade ainda desconhecida e inconcebível, a necessidade de reformulação dos conceitos éticos face às novas tecnologias, e dos conceitos humanísticos face aos cartões micro-chips que serão tudo o que um cidadão precisará, em futuro não muito longínquo. Premente questão se põe, sobre o lugar que a inteligência humana ocupará, além da formulação de novos contratos sociológicos face ao cenário descrito e adivinhado, onde se terão de incluír necessariamente novas pedagogias, novos conceitos de Educação, de Filosofia, Economia e de Política.


Enquanto estes cenários se encontram em gestação na bruma do futuro, enquanto a Humanidade ainda concebe conhecer o tempo evolutivo, esperar-se-ia que em Macau, lugar geográfico máximo do elogio genético e cultural da portugalidade ­ apontem quem conjuga dois idiomas, a língua de Camões e a de Confúcio, extremos de dois continentes num espaço de tanta densidade afectiva ‹ todos pudessem ter uma voz, sobretudo saudavelmente díspar de outra que ainda vai podendo, ou sendo-lhe permitida tal ousadia.


Regressando à bandeira que o vento ondulará, mais aos sentidos do afecto, o conceito de macaense que considero hoje necessariamente ultrapassado, não só pelo que aqui foi exposto, mas porque esperaria que essa miscigenação genética incrível já no século XVIII, pudesse levar-nos colectivamente a intuír que a evolução é a composição do mundo.


Assim, no cenário dos afectos, terá de ser o conceito não apenas da diáspora, mas sobretudo da resistente presença do macaense, e do seu conterrâneo de outra etnia, com quem, a partir sobretudo dos anos 60, intensificou os casamentos, mostrando que não lhe eram requerida grande formação política para intuitivamente proceder à localização genética trinta anos antes, que terá de prevalecer no conceito de uma nova cidadania para os macaenses.


Ter-se-á de saber intuír que o maniqueísmo é uma cilada, ao perceber que o futuro é a globalização que se procurou aludir, e generosamente alargar o âmbito dos nossos afectos àqueles uns que, por pobreza cultural nos excluem, e àqueles outros que emergindo, possívelmente também nos irão excluír, por eventual necessidade de afirmação, chegada a oportunidade e a vez.


Mas é a ideia de razão passada, presente e futura, garantia mais que suficiente ao estoicismo necessário para, de pé, ousar assim manter-se perante as convicções que abraçarmos.


Os descendentes dos homens bons da I República Democrática do Extremo-Oriente sempre foram a diferença que têm de continuar a ser.


Por isso, Macau não acaba, transforma-se. Saiba-se fundamentadamente entender a mudança e que cada um possa, sabendo, construir desde já, uma Cidadania de Afectos que lhe confira meritório acesso a uma outra, a haver, ainda intuída, brumosa, mas inexoravelmente real. A cidadania do devir alimentada na esperança construída contra as adversidades.


seguinte

 

Comentários

Mensagens populares