O CARTÃO

Eram vésperas de Ano Novo Chinês, o movimento era muito e eu saíra de casa relativamente cedo, a tempo de estar na abertura do centro comercial. Era mais fácil estacionar nesta cidade onde o direito cívico de estacionar vai escasseando, tendo por solução alternativa, à falta de outra mais construtiva, a punitiva multa.

Já atravessara a pé o pequeno troço entre o automóvel estacionado e o passeio, quando alguém grita por trás de mim o meu nome em chinês.


Uma carrinha mínima com um rosto desconhecido e sorridente a dizer-me: só um momento. Do outro lado da viatura sai uma figura que se dirige para mim. É calvo o homem, mas o cabelo que lhe resta é forte e embora mais baixo do que eu, o corpo é seco e do semblante sorridente transparecem dores engolidas, uma vida sofrida.


Lembra-se de mim? Apertamos a mão. Faço um esforço, a minha mente viaja no tempo vertiginosamente, e reconstruo-lhe o fácies. Rápido, que é preciso responder.


Teria sido há cerca de 18 anos que nos encontrámos pela primeira vez. Vi caminhar na minha direcção um homem de cabeça rapada à navalha, o ar cândido dos que renunciaram ao mundo, seguindo de Buda a palavra. Como que a comprovar tais indícios, trazia a sacola de pano a tira-colo, sinal iniludível de que se não professara, para lá caminhava.


Decididamente o homem não era de Macau. Chegado ao pé de mim, e quando, baixando a cabeça me cumprimentou, pude ver que o seu crâneo rapado ainda não recebera as nove marcas. Falava mal o cantonense. Pedia trabalho, ali, ele e eu em pleno pátio exterior do Museu.


Expliquei-lhe que os empregos oficiais requeriam pedidos formais, inscrições.


Havia naquele rosto uma certa candura, e à medida que ia percebendo o que lhe dizia, o semblante ia ficando cada vez mais espantado. Mas o senhor é o chefe disto. Se o senhor quiser… eu trabalho em qualquer coisa. Sou discípulo de Buda, mas ainda não tomei os votos finais.


A candura é uma dessas raras qualidades que me impressionam. Ainda hoje acredito que de candura se tratava. Afinal no mosteiro mandava o abade, porque seria que tudo tinha de ser diferente cá fora?


Não podendo fazê-lo entender que o mundo laico era diferente, nem que não havia hipóteses para um recém-chegado sem atestado de residência, disse-lhe que viesse quando tivesse os documentos em ordem. Com alguma desconfiança, anuiu, e lá me fiquei – algo incrédulo – a ver o quase-bonzo emigrante a saír o portão.


Um dos modos pelos quais tenho olhado a China foi por via dos inúmeros dramas humanos que sempre encerrou ao longo dos séculos. Pequenos-grandes dramas, suportados sem queixume nem azedume, numa postura hermética, como se tudo estivesse encerrado num livro fechado para não ser aberto.


Desde pequeno que intuía em muitos rostos histórias nunca contadas. Nesse tempo achava que lhes não tinha acesso por ser criança…Agora sei que não lhes tenho acesso porque nelas não fui personagem. E enquanto sobre isto de pudores e histórias de dores e dramas humanos escrevo, admitamos que sobre o primeiro encontro com o rapado seguidor dos caminhos que Buda transcorreram vários meses, o que foi verdade.


Um dia, ou mais concretamente, ao jantar, fui encontrá-lo no templo da Taipa que servia comida vegetariana, movendo-se hábilmente entre as mesas e a cozinha. Sorriu-me com a mesma candura, e nesse dia parece que os pratos estavam mais fartos e o arroz era mais do que o costume, apesar da proverbial benevolência do abade que eu muito estimava.


Senti-me contente por o jovem bonzo ter encontrado abrigo no melhor tecto. Despedi-me dele recebendo um daqueles apertos de mão envolventes, duas mãos calosas sobre a minha e o olhar, apenas o olhar, vagamento inquisitivo. Perguntei-me se haveria aí alguma mensagem que eu apenas poderia intuír. Estranhos os caminhos diversos que os homens recorrem, até mesmo ao silêncio, para pedir algo, quando dar é bem mais gratificante que pedir. Talvez tivesse sido por isso o silêncio do olhar, e a particular abundância do jantar. A hábil criação de um crédito que permitisse a troca do pedido. Teria de esperar para o saber.


E é fácil - no recordar - que o tempo corra comprimido, entre um parágrafo e outro…


Um ano volveu, e como se tudo tivesse sido combinado e escrupulosamente seguido, apanhou-me à entrada para o trabalho. O cabelo crescera um centímetro, os olhos tinham perdido a candura que vira neles, o cenho carregara-se mesmo sem ele o notar. Mostrou-me os antebraços em geito de justificação.


Reconheci de imediato nas equimoses e nas crostas redondas o treino intensivo para blocagem. Antebraços batidos vezes sem conta contra troncos de árvores. Sio lam tchi, disse-me em cantonense, referindo-se ao mandarínico Shaolin.


Naquele momento pressenti que não percebera o meu confrangimento, o meu choque perante aquela visão, como a de um amputado que ostenta o coto.


Posso trabalhar como guarda, insinuou num esgar acentuado pelas sobrancelhas.


Perdi o tempo em que fiquei imóvel a olhá-lo, e ao sorriso ansioso, a minha cabeça viajando por quilómetros de hipóteses de utopias. E no meio de tudo isso, a tristeza infinita de o saber saído do templo da Taipa. Percebia-se que tinha desistido definitivamente. A sua alma mudara radicalmente. O aspecto desleixado, os antebraços bélicos atestavam-no. Para onde iria agora que tinha tomado outro caminho? Como sempre, pouco percebia ele da nossa Administração. Tanto quanto eu perceberia daquela de onde ele tinha vindo.


E em mais este solilóquio, mudo e quedo, sem eu lhe poder acudir, transcorreram anos e anos, até ao grito pelo meu nome dado em vésperas deste ano novo chinês.


Tinha uma filha já de doze anos, e era dada às artes, segundo o pai. Se eu pudesse encaminhá-la, que tinha recebido prémios em concursos. Mas claro, respondi-lhe. Mas já não trabalho na Administração, disse-lhe à cautela. Sorriu, a mesma mão grossa tirou um cartão, o polegar com uma unha comprida quase cobria o cartão todo. Estava escrito todo em chinês. Eu que o contactasse quando pudesse. Ah, muito bem, fingi eu ter percebido o cartão. Com que então patrão.


Os olhos semicerraram-se e fez que não com a cabeça. Noblesse oblige.


E depois de me ter desejado Bom Ano, correu para a carrinha, dois vincos fundos a ornarem-lhe o sorriso. Vincos amargos para um sorriso já, enfim, mais desafogado.


Por simpatia, o que ficara na carrinha sorriu-me e disse-me adeus em nome do patrão que olharia o trânsito pela outra janela, pronto a arrancar.


Fiquei a olhá-los saír, modestos, indo à vida que era dura. E olhei por muito tempo as pessoas que passavam à minha volta, respirei o ritmo da cidade, senti-lhe a respiração, e naquele momento não havia nem chineses, nem macaenses nem expatriados. Havia cidadãos com direitos iguais - por muito que eu soubesse de outras histórias de ódios e intrigas, de nepotismos, arrogâncias e vãs importâncias - que tinham um extenso domínio: escolhiam o caminho por onde iam sem ter nada a ocultar.


E nas mãos ficou-me preso um cartão de visita todo em chinês, que eu não quis ver traduzido. Porque mais do que um cartão, aquilo era um elo onde a palavra escrita não era importante.


Aquele pedaço de cartolina impressa era o testemunho de que não é a política a comandar os afectos e as memórias, nem tratados, acordos ou desacordos. A vida e a relação entre os homens é a esperança suprema e derradeira que faz deles cidadãos livres, donos do seu caminho. Nesta simples constatação resume-se todo o panorama que o conceito de progresso em cidadania plena encerra.


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