O MINARETE

Parecia um farol, essa torre esguia e ligeiramente cónica, mas a única luz que emitia vinha dos que, não precisando de olhá-la, ouviam a voz tenorada do almuadem, repetindo secularmente: La Ilaha IllallahMuhammadur Rasulullah. Allahu Akhbar, Allahu Akhbar.

Alfim - já que de árabe se está falando - o velho chamava à oração num longo canto que lembrava as origens do fado, entre as ruas esconsas da que seria a Sé, ainda não havia de sonhar Deus que a cidade teria dois cercos, nem que Afonso seria nome de rei ou Saramago nome de escritor.

Tinha este minarete a característica de todos os outros. Podia-se olhar para baixo e em redor, e era feito de pedra, que ali não havia marfim que chegasse.

Diziam os crentes - que eram quase todos - que de lá de cima se avistava Geb Al Tarik, o que não se sabendo, se tinha como verdade passeada de boca em boca. Porém nunca ninguém se tinha dado ao trabalho de subir os mil degraus em espiral, talvez porque o velho, que nem era assim tão velho, não deixasse, porque ali vivera, quase desde sempre, na base da torre.


Subia o almuadem os degraus arrastando as chinelas, vezes sem conta, enquanto lia o Corão sem olhar os degraus, quanto mais alto, mais tranquilo, que o poço do centro não lhe metia medo. Ao contrário do outro, este não era cego, via e tinha visão, e, mesmo lá de cima, distinguia homens de vermes, tão habituado estava a subir para descer, repetindo infinitamente o ciclo do sol e da lua, solitariamente e sem desejo de mais do que louvar cinco vezes ao dia, virado para Meca, a Allah e ao seu profeta Maomé.

Tinha este homem, para além da crença profunda em Deus, uma inteligência arguta, uma fina ironia, um riso de auto-satisfação quando, de passagem, a vizinhança lhe perguntava se já tinha acabado de subir ou de descer. Gargalhava e respondia que lá de cima lhes não ouvia a voz e, quando em baixo, não os podia ouvir porque não diziam. Só ouvia quem dissesse, que faladuras não eram com ele.


Tinha Ahmed Al Akhbed o hábito de tranquilamente se sentar no já gasto mármore dos degraus exteriores da sua torre, e sonhar o que lá de cima vira, antes e depois de chamar os fiéis à oração, enquanto mastigava azeitonas pretas numa tigela de barro.

Via melhor depois de ter visto. Sempre achara que a visão da memória era melhor que a do momento. Ficava decantada, e a argúcia fazia o resto.

Pela sua frente passava sempre gente, e Ahmed via-lhes a alma sem que ele próprio quisesse. Pregoeiros vendendo água, mulheres subindo ao castelo, marinheiros regressando da faina, comerciantes, escravos, crianças, e assim deixava correr o tempo entre as orações, olhando o dentro dessa gente, indagando-se sobre os desígnios de Allah ao ter criado o homem. Que deus o perdoasse, mas criava demais. E de tanto criar, às vezes não era tão perfeito…

Sacudiu a cabeça rapidamente para afastar tais blasfémias, mesmo pensadas, quando lhe passou pela frente um arauto do Emir, montado num burro, e fumando do cachimbo de água que levava suspenso da sela.


Ahmed Al Akhbed viu-lhe o rosto afogueado, a pele lustrosa, os olhos saídos, e sem querer entrou-lhe na alma. E nela viu baratas e vermes amontoados, misturando-se, mexendo-se repugnantemente. E viu a inveja e a ganância, tudo num segundo, que o homem parou o jumento e dirigiu-se-lhe: "Almuadem, quero visitar o minarete".

Ahmed cerrou os olhos e sorriu tranquilo. "Algo me diz que sabes subir. Também algo me diz que não sabes descer… Mas és livre de ver a cidade lá de cima".

Descido do asno que sem dúvida sorria de alívio, o arauto do Emir aproximou-se pesadamente. "Tem tento nessa língua, almuadem. Deverias cuidar com quem falas. Profetizo para o Emir, dirijo os astrónomos do Observatório, e tenho muitos outros cargos e amigos vários e poderosos. Põe-te de pé e conduz-me".


Ahmed cuspiu o caroço de uma azeitona para junto dos pés do escriba. "Deus é Deus e Maomé é o seu profeta". Os olhos do almuadem cerraram-se novamente, a boca gargalhou. "Sobe por ti se fores capaz. Ou que os teus ditos amigos te ajudem".

Mustafá ibn Al Hassam empertigou-se, os olhos quase lhe saíam das pupilas, afogueou-se ainda mais alucinantemente. "Pois seja almuadem. Não preciso de ti!" E voltando ao burro, montou-o e dirigiu-o para a entrada onde Hamed estava sentado. Não era o burro animal estúpido, e tendo a sua dignidade não hesitou e, escoiceando, fez Mustafá estatelar-se no pó, desandando de seguida com um relincho de satisfação.

Não acreditava o autoproclamado profeta do Emir que tivesse mordido o pó, ainda o corpo todo lhe doía da queda. Fazendo das tripas coração que não tinha, levantou-se esforçadamente e, cambaleante ainda, disparou. "Não penses que não subo por mim".

Tranquilo, Hamed, afastou-se da entrada. "É o que sempre deverias ter feito. Sobe se puderes".

Refeito, Mustafá tomou fôlego, e decidido, entrou de rompante na torre. Ahmed, passou tranquilamente por ele ainda os degraus eram apenas cem, para mais uma vez chamar os crentes à oração. O outro resfolegava, subindo penosa e teimosamente.

Feita a oração do meio-dia, de novo se cruzaram, Ahmed descendo tranquilamente e Mustafá ibn Al Hassam, desemburrando-se a meio, a pele ainda mais lustrosa, os bofes saindo. Olá disse Ahmed, qualquer subida por meios próprios é custosa. Mas prossegue que eu vou almoçar.


Já o sol apontava para as quatro da tarde quando de cima do minarete se ouviu a voz de Mustafá chiando. "Não, não, daqui não se vê nada. É tudo mentira"!!!

O almuadem sorriu, fechou deliciadamente os olhos, enquanto a vizinhança vinha ver que mentira era aquela.

Um homem gritou. "Mas não vês mesmo nada? Nem a cidade?"

"Nada"! Respondeu do alto Mustafá.
A multidão virou-se para Ahmed. "Então é tudo mentira, almuadem".
"Tirem-me daqui que estou com vertigens"!!! Interrompeu lá do alto Mustafá ibn Al Hassam, aos gritos.

"Eu não", disse um homem. "Ele que desça por si", replicou outro.
Ahmed rompeu então o seu silêncio. "Ninguém o pode ajudar senão ele próprio. Só vislumbra quem pode ver. Há pessoas que só vêm uma coisa".
"Tirem-me daqui, tirem-me daqui"!!! Gritava lá de cima Mustafá, a voz aterrorizada.

Ahmed voltou a cerrar os olhos como era seu hábito.
"Tira-o de lá almuadem", disse um mercador. "Só tu podes subir tão alto".
"Tira-o de lá Hamed", disse Fathma, a viúva que lhe oferecia azeitonas. "Vai passar o tempo a berrar como um porco, e tu sabes bem que porcos estão banidos do Islão".

O almuadem falou de olhos cerrados, como se olhasse de dentro. "Esta criatura tem de saber descer por si".
Não vês que está aterrorizado com a altura? Retorquiu o mercador.
Se tanto insistem, disse Hamed, tu mercador, empresta-me uma moeda de ouro.

Ahmed pegou na moeda tranquilamente e seguido da multidão, dirigiu-se para a entrada do minarete. O mercador e Fathma, a viúva, entraram antes de Ahmed, não fossem perder pitada. Outros seguiram enchendo a pequena base da alta torre, onde qualquer som tinha um enorme eco.

"Afastem-se do meio" disse Ahmed, e perguntou de novo. "Querem que ele desça mesmo?"

Perante o assentimento geral, uns mais para deixarem de ouvir a berraria que ameaçava estragar-lhes a noite, o almuadem lançou a moeda de ouro para o centro do chão da torre. O som cristalino do ouro nas lajes do chão repercutiu-se amplificado por toda a torre. E ainda os presentes ouviam o eco do som da moeda de ouro que ainda não acabara de girar sobre si mesma, quando o corpo de Mustafá ibn Al Hassam se estatelou com um estrondo seco que ecoou surdamente. O crânio abriu-se enquanto o turbante que lhe atava a cabeça se soltara, e dele corriam por todo o lado moedas de ouro, agora misturadas por um viscoso líquido que escorria do crânio aberto, entremeado por larvas, vermes e baratas, visão horrenda que enojava a todos.

Ahmed, o almuadem quebrou o silêncio. "Eu disse que há pessoas que só vêm uma coisa"…



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