SONHO

Tem o sonho a característica de se constituír no acto mais livre e singular da Humanidade.


Nesta terminologia não cabem obviamente conceitos neurológicos ou freudianos. Apenas, e puramente, o acto de sonhar.


Tal acto de consciência projectada a patamares inacessíveis quando não partilhados, levam-nos a ter a concreta noção da imaterialidade concreta do sonho, paradoxo que começa no voo de Ícaro, em Camelot, nas máquinas de Leonardo, no sonhado Catai de Marco Polo, na lenda de Sagres, no desvendar do abismo do Cabo das Tormentas, no Cubismo de Pablo Picasso aos sonhos de Corbusier, num interminável préstito de feitos, mitos, epopeias e lendas decorrentes desta actividade única.


Tem porém o Sonho a qualificação de constituír a mais profunda poética dos sentidos, a mais forte emanação da espiritualidade do Homem.


Não sendo o sonho mensurável ou mesmo classificável em termos temáticos, é património da Humanidade, colectivo e individual, constituíndo a expressão por excelência da mais íntima e da mais plena das liberdades.


Contudo nem sempre o sonho constituiu por si acto feliz. Por vezes comporta a imolação para se cumprir.


Há precisamente 30 anos, um homem foi friamente assassinado pelo seu sonho. Homem de Paz, homem da Paz. A 4 de Abril de 1968, no Lorraine Motel em Memphis, Martin Luther King, Jr., foi baleado porque ousou dizer: I have a dream! E esse era sonho da igualdade em alternativa à exclusão, a fraternidade em alternativa à discriminação. Sonho de cidadania plena.


Curiosamente 1998 também é o ano em que se comemora o 50.º Aniversário da morte de outro grande pacifista, de seu nome Mohandas Karamchand Gandhi, Mahatma Gandhi ou, mais carinhosamente, Bapu.


Também Bapu acordou para um sonho, desperto pela arrogância colonial britânica à qual opôs a fortíssima arma do seu pacifismo, origem da independência da sua Índia, da qual foi Pai, infelizmente ela própria ainda dividida em castas.


Há pois em todos os sonhos algo de colectivo, algo de inovador. O sonho de Sagres, de Leonardo, de Martin Luther King, de Bapu, são simultaneamente respostas de líderes. E os líderes não seguem, regra geral, caminhos gastos. Desbravam novos. Não resolvem problemas, inovam. E, sobretudo, não deixam que outros determinem os seus destinos. Em resumo, um verdadeiro líder nunca o quis ser. Por isso é. Paradoxo que nestas regiões do Extremo do Oriente não constitui senão uma forma milenar de expressão.


Não que o sonho comporte liderança, mas não há liderança que não comporte o sonho.


EXCLUSÃO
Sendo o sonho também tudo o que se disse, poder-se-á inferir que o império do onírico constitui a antecâmara do progresso e do desenvolvimento globais, património fundamental da Humanidade e, como tal, imprescindível ao Homem.


O desenvolvimento desiquilibrado gera assim destituições sociais, exclusões incomportáveis para a igualdade em cidadania plena.


Aquelas, sejam de carácter social, económico ou cultural, comportam necessariamente reacções de revolta social expressas das mais díspares formas, porquanto a destituição é sempre uma forma de exclusão, de discriminação recriminável, porque recriminante. Logo, intolerável e intolerada.


Pergunto-me se no fenómeno social, para além dos dados já adquiridos, não existirá em Macau destituídos do sonho que se desejaria comum.


E é sobre todos estes que importa operar, inovando, reinventando tanto quanto possível a cidade global.


Se remeter para os ghettos da Areia Preta os neo-cidadãos é uma forma de seclusão social que redunda em criminalidade, outras formas mais elaboradas de destituição se exprimem de forma vária que importa redimir.


SONHO REDIMIDO

De facto o grande sonho português para Macau, deveria ser não uma operação política, não uma manobra de bastidores, não jogos de desculpabilizações, mas um grande sonho cívico, onde a cidadania passasse a ser não apenas um conceito adquirido, um direito, mas também um dever. Onde as instituições servissem solidariamente o cidadão com respeito pelos seus direitos, onde as culturas fossem devolvidas aos seus portadores, autores e intérpretes, onde o sonho fosse um direito apoiado, onde a solidariedade não fosse a caridade do supérfluo, onde o trânsito entre as comunidades fosse incrementado pela instituição dos meios necessários conducentes a um verdadeiro reforço da Identidade de Macau e do inerente sentido de pertença, onde a chamada dos cidadãos à participação da coisa pública fosse um acto concretamente onírico onde, finalmente, os símbolos fossem sobretudo morais e espirituais.


Madre Teresa de Calcutá, também desaparecida este ano, disse: Calcutá pode ser encontrada em todo o mundo, assim tenhais olhos para ver.


E neste lugar que nasceu de um sonho, que se deveria o sonho redimir do prolongado abandono por via da humildade, do fácil acesso, do sorriso sincero, do afecto pleno.


Ontem já passou. Amanhã está para vir. Temos apenas o hoje. Vamos sonhar? 

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