A ARISTOCRÁTICA REPÚBLICA MACAENSE

 Pude assistir à sessão inaugural do III Encontro das Comunidades Macaenses e subsequente desfilar das comunicações dos meus conterrâneos, que me coíbo de destacar porque, no respeito pela sua diversidade, todas foram excelentes.


Foram elas paradigmáticas da diversidade na unidade de uma aristocracia que se alcança não pelo sangue, que é vermelho para todos, nem pelo nome que se não herda apenas, antes se amplifica nos valores e princípios que reforça ou incorpora.


É que, sendo o macaense, por tradição antiga dos seus homens bons, republicano e democrático, estará, agora ainda mais que nunca, vocacionado para o diálogo enquanto lugar e praxis da troca de ideias.


Foi assim que, com satisfação, os macaenses que assistiram às comunicações dos seus conterrâneos se terão revisto orgulhosamente no modo como foram expressos os seus anseios, lamentando apenas que mais vozes não tenham sido chamadas a intervir neste especialíssimo Encontro.


Na sequência destas intervenções se verifica que todas estas e outras mais valias, testemunhas de uma memória, saber e registo histórico, residentes e emigradas por força da proverbial impreparação colonial para o seu aproveitamento, como tantos outros seus conterrâneos, teriam sido elementos fundamentais como interlocutores privilegiados a dar o seu avisado conselho ou a sua participação desde o início da Declaração Conjunta, e na globalidade do processo de transição de Macau. Não quiseram os fados, feitos vontades políticas, coloniais e posteriores à democratização do País, que estas mais valias macaenses fossem acrescentadas às outras - poucas, embora de igual modo excelentes - incluídas no rol das contribuições para o seu próprio devir.


A condição da aristocracia macaense é assaz curiosa e irónica. É que, estando ela própria dotada dos valores humanos necessários ao traçado do seu próprio destino, mais uma vez o chamado delegado poder do reino, pouco falante do chinês, pouco mediador directo, optou por ignorar toda a mais valia que tinha à mão para, com mais legitimidade e cautela construír humilde, solidária e conjuntamente, um processo que não poderia, por ser contra natura, admitir exclusões.


Com efeito, parece que algum conceito de aristocracia emprestada continua a desmonstrar outras vocações, porquanto operou em circuito hermético, não para a funcionalidade de objectivos do bem comum - que lhe é alheio por dele não ir supostamente fruír - mas para a ribalta, numa estudada teatralidade, vocacionada para outros desígnios que não os que foram jurados.


Na comparação de sistemas ou heranças acima aludidas, inclino-me necessariamente para a aristocracia do mérito, ainda que não necessariamente reconhecida, republicana e democrática. É que, sendo democrática, não só tolera como respeita a existência de outros cidadãos, reconhece-os como pares, sem métricas nem preconceitos.


Assim, não cria um escol de serventuários ou de imitadores no apego às luzes do proscénio, cada um buscando para si o exclusivo da ribalta que pode, no seguimento daquela velha máxima de que mais vale ser reizinho por um minuto que - infelizmente - duque toda a vida, ainda que teimem em desconhecer que duques não vestem librés.


Não sendo porém, nem a verdade nem a razão, património ou monopólio de ninguém, conclui-se redundantemente que a liderança qualificada é aquela que respeita a discordância — e por vezes reflecte sobre esta diferença — procurando nela o próprio elemento qualificador para as suas posições. Costumam ser sábios os homens que assim procedem, porque, sabendo-se que o homem È ser eminentemente inteligente e social, e nunca detentor da verdade como conceito absoluto, muito construtivo teria sido o fraterno trânsito de ideias. Porque numa sociedade dita desenvolvida, a diferença de opinião é um direito que não conduz à exclusão. Daí que a discriminação não constitua senão uma menorização de quem discrimina, um empobrecimento de si mesmo como ser social, a todos os títulos lamentável, sobretudo havendo ideias de liderança.


Nenhum dos intervenientes a que no início deste artigo me referi, e que proferiram as suas brilhantes comunicações, teceu sobre si elogios, nem – por casual exemplo — contratou quem, por eles, lhos tecesse.


Tal não aconteceu, mormente porque os objectivos que perseguem são precisamente os de uma verdadeira aristocracia, daquela que se constrói e se não proclama ou propagandeia pelos feitos que são apenas meras obrigações ou responsabilidades.


É que fazer bem, para quem serve a Pátria, não passa de mera obrigação. Fazer mal feito ou com objectivos inconfessáveis é que requer, porventura, o adorno e apoio do auto-elogio, precisamente porque o verdadeiro objectivo não é o que se proclama.


Deveria contudo ser um outro, ainda mais grandioso e subtil, porque de maior alcance, visão e espiritualidade. Tal desígnio ou propósito, como é moda dizer-se, não está sempre à mão de quem quer e pode. Apenas porque não faz quem quer porque pode, faz só quem pode porque sabe. Pequeno detalhe sem importância de maior no cenário a que nos habituámos nesta velha República do Oriente.


Cada um tem por isso na vida, a sua bitola, e há espelhos que, por serem baratos, pouco têm de mágicos, antes papagueiam mais elogios do que verdades, originando convencimentos que não reflectem a nudez de duques mascarados de reis de copas, felizes por ouvirem a voz gravada a dizer repetitivamente: “Ès tu. Ès tu”.


Nascem ainda assim, os homens, todos da mesma maneira, e da mesma forma despojados, para que a estes caiba revestirem-se daquilo que pela vida forem construindo, cada um envergando o carácter que soube para si edificar.


Na vida e no mundo, o poder, metamorfoseado tantas vezes em poder pessoal, não passa de uma febre ilusória, de uma auto prestidigitação — sem dúvida decorrente de espelhos fora de prazo — que por vezes calha aos menos avisados para com tais perigos lidar. É que, entre poder e autoridade vai um mundo...


Se aos de maior poder os resultados se não observam de imediato, aos servis seguidores notam-se de pronto os efeitos da usurpação.


E nos recentes dias assistiu-se à mistificação do louro, prato culinário que consiste sobretudo em servir por lebre um pobre gato — usurpando a vários níveis, aos que verdadeiramente trabalharam — apressadamente temperado para a fotografia, que por ser retrato, não tem felizmente outro sabor do que o do corante. Depois, o azeite, separado da água, mostrará a seu devido tempo, vindo ao de cima, a real imagem. Porque tudo tem um tempo e este não conhece distâncias.


Entretanto, e porque os dias se vão sucedendo, importa fazer vingar a essencialidade do afecto entre os cidadãos, como se nunca tivesse havido a hegemonia do preconceito, da discriminação empobrecedora, do nepotismo tacanho, do farisaísmo visível, postura de diminutivos, incompatível com desígnios que toda uma Comunidade esperaria, tivessem sido cumpridos por auscultação da mesma, em permanente diálogo solidário e humilde, partilhando responsabilidades.


Pena que alguns não saibam esta virtude da partilha, da comunhão, da solidariedade e da hegemonização do diálogo do colectivo e do indivíduo — e recorrendo a elementaridade de Dumas — expresso por Athos, Porthos, Aramis e D´Artagnan: Um por todos, todos por um.


Perdeu-se assim para a Pátria que a todos contempla, um tempo último de grandeza. Apenas se engrandeceu a pequenez, o que é pouco para tanta esperança…


Amanhã será porém outro dia e o sol mantém o seu calor, apesar do toldado do céu.


Far-se-á luz sobre este delta, e os macaenses, aristocratas, continuarão a sê-lo, a bem de Macau e da humanidade, que o resto acaba por ser ducado de passagem, em baralho viciado.


E, quando este Encontro terminar, e a rotina se fôr, aproximando do fim com a indigitação do Chefe do Executivo futuro, uma primeira cortina translúcida cairá sobre o palco, e talvez alguns sintam o início de um sabor a fel, e a dôr de se verem trocados, caindo sobre eles a sombra do ocaso, que a ribalta será outra.


Assim é a lei da vida, tão cruel como as crueldades exercidas, as viagens pagas, os amigalhaços passeados, e o mais que por pudôr se omite.


E talvez, apenas talvez, haja então um assomo de consciência de que a distância não é o melhor meio de expressão nem de angariação de afectos ou lealdades, porque os homens – por muito que alguns não queiram – são iguais.


Apenas se distinguem na maneira como sabem ser homens.


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