A CIDADE IDEOLÓGICA

Já não é possível deixar de, penalizadamente, constatar da inexistência em Macau de uma ideologia urbana no seu conceito mais lato. Porque uma ideologia não tem necessariamente que ser política. Cada vez se torna mais importante, face ao desmoronamento das ideologias de raiz política diversas que subsistiram até aos anos 80, entender que a cultura é já por si a ideologia por excelência, sobretudo em cidades com vocações de Cidade-Estado, como Macau, Hong Kong e Singapura.


Estão por demais desacreditados os discursos formais, auto-elogiosos, pelo infinito desajustamento que revelam sobre o terreno, pela total incompreensão das dinâmicas da cidade, terreno onde tudo se joga e acontece.


Numa cidade com a vocação de Macau, a incapacidade de levar ao concreto ideias que por todo o lado pululam, a sublinhar a vitalidade dos cidadãos, a incapacidade de ler globalmente o discurso social dos diversos pólos, a impercepção do concreto, trocado pela projecção toda-poderosa de lucubrações neo-políticas pontuais conducentes a um estreitamento do ângulo de visão do poder em versão concentrada, acabam por retirar credibilidade ao mesmo.


Daí decorre a conclusão evidente de que, perante o panorama que ao cidadão se oferece, à cultura do poder não corresponde um poder culturalmente apetrechado para entender a necessidade de uma ideologia cultural como suporte para a decifração menos superficial dos quotidianos que perpassam por Macau.


Entende-se assim que a esta falta de uma compreensão humanística do conceito da Cidade como espaço privilegiado de convívio, diálogo e debate, se vá esboçando nos céus plúmbeos, uma palavra.


KAGEMUSHA – SOMBRAS

Uma das obras-primas de Kurosawa Akira é exactamente sobre a queda do clã Takeda que originou o estabelecimento posterior do Shogunato dos Tokugawa.


Kurosawa, ao criar um duplo, Kagemusha, ao Chefe do Clã Takeda, cria um personagem sombra.


Ora o que acontece numa cidade governada pela inexistência de uma ideologia virada para o colectivo, é precisamente a emergência da sombra, do efeito da projecção de uma realidade pré-construída, por interposição de um corpo imaterial, capaz apenas de provocar sombras.


Ora da imaterialidade da sombra terá necessariamente de resultar um vazio, um desenraízamento de uma ordem e cultura cívicas que seriam fundamentais para o reforço de uma matriz cujos indicadores apontam para uma dissolução perante as áreas vizinhas.


Que Camelot é uma bruma já se sabe, que os cruzados eram bárbaros, basta ler Amin Maalouf, que porém a obra de Sun Tzu se mantém actual, tanto quanto o Hakagure de Yamamoto Tsunetomo ou o Go Rin No Sho de Miyamoto Musashi, para qualquer um que se interesse por estratégia, seria leitura obrigatória, sobretudo tendo em conta que tanto Tsunemoto como Musashi eram da casta militar dos Samurai.


Assim, nesta parte do mundo onde a encruzilhada cultural é uma realidade, o código do Bushido parece estar demasiado ausente, seja na sua versão original, seja em qualquer versão livre. Aliás, ausentes estão, como sombras já referidas, quaisquer códigos que situem o comum dos cidadãos nos limites mínimos da perceptibilidade, o que acaba por constituír uma imagem redutora que a ninguém interessa.


Esta falta de projecto que se patenteia pela incomunicabilidade que propicia a legitimidade de todas as ilacções, deixa o cidadão defraudado perante as naturais expectativas que teria de um ideário integrado, de entendimento e revitalização de uma cidade enquanto projecto cultural porque político, e político porque cultural, isto é, esperar-se-ia no mínimo que a ética e a moral impedissem o princípio de Piter a qualquer escala, porquanto os interesses que se jogam não são, segundo tudo indica, os que interessam ao colectivo.


A CULTURA DE ESTADO

O inexorável correr da ampulheta torna cada vez mais irreversível duas situações.


Uma, a evidência de uma verdadeira cultura de estado. Um estadista não discursa, age sobre o tecido, valoriza-o, dialoga, intervém e debate. A questão resume-se toda numa palavra: eficiência e resultados. O discurso é mera formalidade posterior.


A outra razão, decorrente da primeira, é a de que qualquer projecto pessoal mais ambicioso, que se reconhece sempre legítimo, desmorona-se no cômputo geral de uma análise não da matéria edificada e perecível, mas na ausência de espiritualidade que conferiria mais valias extraordinárias no diálogo cultural entre Portugal, Macau e a China, onde se esperaria que a chamada integração fosse um direito em aberto, a ser reclamado quando se quisesse, em vez de uma opção conducente à desertificação que se vai acentuando cada vez mais, à curiosa excepção de certas direcções de serviço.


Do mesmo modo se constata que a insegurança que se sente de um modo quase generalizado, agora também por via de bombas e de raptos, decorre da mesma carência de um projecto integrado e coerente de cidade plurifónica, intencionalmente instigada para o debate construtivo e participação cívica.


Afinal, tal como Kurosawa produziu, tudo não passa de sombras. 

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