A OUTRA FACE DESTA
"Façamos como Jesus Cristo. Demos sempre a face à bofetada, mas saibamos mover-nos por forma a que, quando ela chegar, já a face não esteja lá".
Morihei Ueshiba (1883-1969) fundador do Aikido.
AIKI
Em diversos momentos o indivíduo ou a sociedade é chamado a agir ou a reagir perante circunstâncias que, actuando como estímulos, positivos ou negativos, desencadeiam actuações de cariz diverso que revelam o estado emocional quer do estímulo, quer da reacção a este. Em qualquer dos casos, importa é que o que fundamenta tais acções seja ditado por princípios onde a razão se sobreponha à emoção, já que as sociedades modernas têm vindo a perder valores éticos, na forte ilusão das supremacias alimentadas por uma feroz competição.
Estas situações de diluição de valores levam necessariamente à progressiva dissolução do primado dos códigos da ética, da honra e do comportamento, consolidando cada vez mais a predação como fenómeno comportamental imediato.
Daí que, ao reflectir sobre este tema, pela memória me tenham passado inúmeros nomes de pessoas que representaram, quer a sua própria redenção, quer, por essa via, o exemplo imparável da sua força moral.
Buda, Jesus Cristo, Francisco de Assis e, mais recentemente, homens como Mahatma Ghandi e Martin Luther King constituem exemplos aos quais gostaria de acrescentar – sem esgotar contudo a lista dos homens e mulheres que se constituíram em paradigmas da Paz - o de Ueshiba Morihei (à maneira chinesa, os nipónicos colocam o apelido primeiro) nascido na pequena aldeia de Tanabe a 14 de Dezembro de 1883 e falecido em Iwama em 1969.
Graças a ele, ingressei no rol dos curiosos da história e cultura japonesa - além da chinesa - tendo-me apercebido da estruturação dos códigos do corpo, do espírito e da mente, e dos rituais a estes adstritos, conjunto de normas de uso prático, em qualquer modalidade de Budo ( Via Marcial ).
Efectivamente o fundador do Aikido - hoje com milhões de praticantes espalhados pelo mundo - só poderia ter criado a sua Via depois de ter percorrido diversas formas de jujitsu e kenjitsu, das quais a mais influente terá sido o sistema marcial que permaneceu secreto durante séculos, dentro do formidável clã dos Takeda: o Daito-Ryu Aikijujitsu e o Yanaga-Ryu, ainda hoje praticado com Tachi (grande espada), característica do Período do Kyuba-no-Michi.
O Aikido constitui, assim, a revisitação, a síntese, e o aperfeiçoamento das mais importantes expressões marciais nipónicas, e a conclusão de que – após as experiências da Guerra Russo-Japonesa e da Segunda Guerra Mundial – a via marcial não é senão um método de auto-aperfeiçoamento, e de pacifismo. Dê-se a palavra a Ueshiba Morihei nas suas prelecções sobre a Via que fundou, a qual, carregada de utopia para os dias de hoje, mais se consolida por isso.
"O segredo do Aikido é harmonizarmo-nos com o espírito e o movimento do Universo e entrar em harmonia com ele. Aquele que atinge o segredo do Universo dentro de si pode dizer, eu sou o Universo. Nunca serei derrotado, não importa quão forte ou rápido seja o adversário. Não é uma questão de força ou rapidez. É que a base do Aikido é a não-resistência. Não resistindo, não há combate. Logo a Harmonia do Universo não é interrompida. Fisicamente limitamo-nos a ceder ao adversário, procurando com compaixão, reencaminhá-lo para o caminho do movimento do Universo. Nós não vencemos, porque não há vitória nem derrota. Apenas o adversário rompeu a harmonia existente, e derrotou-se no momento em que pensou mover-se.
Não tenho inimigos, porque me venci a mim próprio. E bendigo todos aqueles que me querem mal porque põem à prova a minha capacidade de resistir à adversidade".
Porém um dos principais postulados do pensamento de Ueshiba pode resumir-se no que afirmou:
"O Aikido é a manifestação de uma Via para reordenar a humanidade como uma grande família. Não é uma arte para lutar e vencer opositores. É sobretudo a cultura do amor por todos os seres vivos e o convite à harmonia global".
Este sistema ético-filosófico que se inicia com a aprendizagem física do que, com a persistência e a prática constitui, como se disse anteriormente, uma entrada num mundo que se abre para ser descoberto em sucessivas peregrinações interiores, tem regras que se designam por Reikishi ou Reigi, literalmente traduzível como etiqueta, mas que para maior compreensão prefiro chamar-lhe de preceitos, e que têm por função, tal como no Kenjitsu, a total protecção do praticante.
Importa incluír alguns esclarecimentos para elucidação do leitor.
Em Aikido não existem competições nem torneios. De um ponto meramente físico, o Aikido não tem ataques, ainda que o desfecho entre um ataque e a finalização da defesa – em movimento normal - tenha uma média de dois segundos.
O que distingue o Aikido do próprio Daito-Ryu Aikijujitsu é a enorme fluídez e beleza de movimentos, desde o Irimi até ao Tenshi-nage (projecção céu-terra). É a eleição do Vazio Universal e a aplicação da mecânica e do Ki, como em Kokyuo-ho.
Tendo Ô Sensei (Grande Mestre) Ueshiba Morihei sido considerado pelo Governo nipónico Tesouro Vivo Nacional, a sua contribuição para a reinvenção do conceito marcial no Japão e em uma parte do mundo que apreendeu os seus princípios físicos e espirituais, onde a Justiça deve conviver com a Harmonia, pareceu-me oportuno relembrar esta figura de 1,52 m de altura que construiu para si uma estatura de grande transcendência moral e espiritual.
DO
Poderá o leitor indagar-se da oportunidade deste texto e deste tema. Não será difícil responder-lhe, se se recordar que todos os caminhos são bons desde que conduzam ao cimo do monte Fuji para de lá se contemplar o sol.
Atravessam-se tempos de conflito e provação, e talvez se não saiba muito bem onde se situa o parâmetro da justiça e da correcção que aquela comporta. Talvez nunca se chegue a saber, sobretudo enquanto se adoptar uma postura de competição e conflito entre interlocutores. Importa contudo entender o reconhecimento de que a resolução de temas com visões opostas requer a disponibilidade para a percepção do Outro, não a claudicação que é pobre solução, tão pobre quanto a ilusão da vitória.
Não é a política que faz os homens, mas exactamente o oposto. Talvez por isso, e enquanto a Humanidade não acede a um estádio colectivo de evolução assente no reconhecimento de que a fronteira de hoje será a ponte de amanhã, pode ir tentando intuír o devir em vez de discutir o passado. Até porque apenas o futuro se constrói.
Dô em japonês e Tao em chinês, ambos querem dizer Via ou Caminho. Ora acontece que o maior mérito dos interlocutores será cada um poder ter a visão de valorizar mais o que os une do que aquilo que os separa. Mais do que as diferenças, o que assemelha os homens a homens é aquilo que os une e não o que os separa. Talvez seja essa a Via que falta para encontrar a passagem.
E se a isto dedicarem um riso de escárnio, Lao Tsé preparou uma resposta multi-milenar no seu Tao Te Qing:
Se não se rissem, o Tao não seria Tao.
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