O INSUSTENTÁVEL PODER DA ILUSÃO

É no mínimo irónico como o Território de Macau - ainda sob administração portuguesa - pelo menos nas últimas três décadas do chamado desenvolvimento económico, se tenha evidenciado pela regular impenitência das sucessivas governações em não encontrarem nem desencadearem outras dinâmicas alternativas em relação à única fonte de riqueza de que sempre se socorreu. Tal é a força da ilusão, aliada à inércia cómoda de ir ao poço já aberto.


Tenho por princípio que não deve o homem levar-se demasiado a sério sob pena de se auto-destituír de toda a capacidade de crítica e de auto-crítica. Destituído, caminha inevitavelmente para a difícil arte da prestidigitação, tirando coelhos da cartola, ou fazendo surgir a ilusão da imperecibilidade. Cada vez a ilusão se vai voltando mais contra o prestidigitador.


Nenhum sistema político é perfeito, mas diria que a democracia, quando tem tradições – como é o caso de Macau – é modelo recomendável pela desejável participação cívica em alternativa a um filme mal iluminado e sem um guião preciso.


Há no entanto um guião, que por ter sido repetido até à insustentabilidade, teve o seu momento de rotura social.


A aparente pujança económica do Orçamento do Território radica afinal numa concertação já trintona na sua versão actual, que se chama Contrato de Jogos. Não se pense que ninguém sabe disto, antes todos sabem mas é conveniente não falar disso senão na sua específica pontualidade.


É pois ilusória – há muito que é – a força orçamental da Administração de Macau. Através do Contrato de Jogos o Orçamento do Território recebe um pujante reforço de 60% da sua totalidade. Em consequência disso, e na ausência de outras formas igualmente pujantes de criação de riquezas alternativas numa Economia saudável – entenda-se por não especulativa – não espanta que a evolução histórico-política se tenha desenvolvido, evoluído e atingido uma certa instabilidade e decorrente insegurança sobejamente conhecida de todos nós.


A questão não radica pois numa especificidade localizada, mas na generalidade do sistema encontrado. Não se trata já de classificar, mas de analisar o que por sistema do sistema, sempre se procurou escamotear. Esta é com efeito a história típica do tiro pela culatra.


O Contrato de Jogos, sendo monopólio como sempre foi, desde os tempos de Fu Tak Iam e do Hotel Central, ao ser alvo de negociações e renegociações e principal fonte de receitas do Orçamento da Administração, se foi um achado, fragilizou mais a Administração, tornando-a refém desse achado.


Tive oportunidade de assistir ao nascimento da concessionária, de assistir às fundações do seu emblemático Hotel, de assistir ao sábio desenvolvimento dos seus negócios, à sua estratégia de indispensabilidade sob aquela filosofia do ceder para ganhar.


Assim, se a anterior concessionária assegurava as ligações entre Hong Kong e Macau, o mesmo se passa ainda. De 15 em 15 minutos partem e chegam jactoplanadores de e para Hong Kong, a um ritmo nunca dantes visto. Nunca as Administrações se preocuparam com a sua autonomia nas ligações com o exterior. Sempre se puseram na dependência de outros, colocando os cidadãos nessa mesma dependência. Nisto como em tudo.


Quando se fala, por exemplo, no aumento do índice de criminalidade, fala-se num aspecto específico, como que deliberadamente desenquadrado do contexto sócio-económico. Não se impute à concessionária a existência de uma Medusa criada pelas administrações que nunca souberam ou quiseram alicerçar a sua autonomia. Veja-se sobretudo quando esta, não sabendo como financiar os seus projectos, recorre ao subsídio encapotado. Quem é accionista na TDM, no Aeroporto, na CAM, na AIR MACAU ? Quem é que pagou parte significativa da construção do Pavilhão de Macau na Expo? Quem é que paga metade dos custos e derrapagens do Centro Cultural, com um sorriso desdenhoso para dentro?


E, já agora, quem é que é refém de quem? Quem gasta mais do que aquilo que tem e pode? Não será certamente a concessionária, que só faz lucros, fazendo o papel que lhe compete.


Ora não havendo estudos sociológicos a apoiar as Administrações que por Macau têm desfilado, não passando todo este panorama existente de mero testemunho de uma disfunção perceptiva, não se impute a culpa da segurança de Macau ao Secretário Adjunto da mesma, ao Comandante da PSP ou ao Director da PJ. Antes tenha-se a coragem de dizer como Edmundo Ho, todos somos culpados.


Seria no mínimo uma referência de lucidez demonstrar que a Cidade onde tudo isto acontece é um todo indissociável, e que a estanquicidade das coisas apenas existe, fabricada, na mente dos que, maniqueísticamente entendem qualquer análise, bem ou mal feita, como um ataque pessoal, esquecendo-se porventura desse simples e inalienável direito à diferença. Nesta questão de direitos, até o errar é um direito. A reincidência é que já não consta das citações latinas.


Pelo que ficou dito se demonstra à evidência de que a inexistência de uma ideologia citadina referida no artigo da semana passada é fragilizante, até porque, quanto mais se não diz, mais se sabe. A auscultação da população em temas fundamentais seria muito desejável tanto mais que quase sempre se tem operado por via do silêncio distante em alternativa ao diálogo. Tomar medidas de excepção perante o chamado crime organizado acaba assim por ser o corolário da imprevisibilidade de análise política e social sobretudo num período de transição. Percebe-se que o todo nunca foi agarrado face à ausência de um suporte cultural e ideológico adequados a Macau.


Tivesse havido consultas aos cidadãos, houvesse vontade de não enveredar pelo fogo fátuo mas pelo trabalho concreto e de resultados urgentes, e possivelmente haveria muitas vozes a dizer, sinólogos precisam-se!!! O director do extinto Jornal de Macau, num dos seus excelentes quadradinhos, escreveu certa vez algo que me ficou na memória e que procurarei transcrever sobretudo a ideia fundamental: …e agora que o Embaixador João de Deus Ramos, o único especialista de Cultura Chinesa que temos, não fica, certamente que vai ser colocado na América do Sul …


Hoje, a quatrocentos e tantos dias da entrega de Macau à soberania chinesa, pensa-se enfim em criar sinólogos. E, como sempre, com solenidade, pompa, circunstância e transmissão noticiosa.


E aos solavancos, derrapagens e exclusões se vai (des)fazendo a cultura em Macau. Tal como nos filmes sem guião, nunca se sabe como vai acabar. Com a diferença do conceito. É que cultura não é o Estado que a faz. Deve apenas encorajá-la e projectá-la.

E se todo este não entendimento da globalidade de Macau como cidade e a falta de uma ideologia cultural que não política – se se entender cultura no seu sentido mais amplo – se constata, ninguém se ri malévolamente disso. Pelo contrário, apenas se lamenta que assim seja. Sem Amen. 

Comentários

Mensagens populares