PASCÁCIO

 A língua portuguesa, na sua extraordinária riqueza enraízada na desmultiplicação dos significantes, não deixa de me surpreender, quase que permanentemente.


Também a espécie humana me não pára de surpreender o que não deveria, em si, constituír supresa. Gostaria, isso sim, de ser surpreendido permanentemente pela positiva. Mas convenhamos que nem tudo é possível. Já a surpresa constitui por si lição humana suficiente.


Não sei se certos actos ou afirmações poderão ser rebatidos pela alusão à ignorância, sobretudo se a sociedade sustentou, por décadas, essa ignorância. Também não é álibi que se não possa ou deva remar contra a maré, aprendendo e conhecendo por si o que lhe estava socialmente vedado ou menos acessível. Não desculpabiliza porém a sociedade em si.


Com efeito, a democracia é um conceito eminentemente ocidental, e o seu enraízamento a oriente, para se constituír factualmente em radical, requer um acesso cultural mais profundo à polis, uma visitação sempre necessária para o entendimento do pensamento que sustenta o dito conceito.


Mas voltando à palavra, e perante uma notícia desta semana, uma única palavra me ocorreu para a revelação de certos actos: Pascácio. Tem esta terminologia nortenha que me vai sendo tão cara como a macaense, uma característica que a notabiliza. A sua fonética, que transcende o significado, suscitando-me o maravilhoso da contemplação da cultura popular.


Um Forum é um local onde o não, o sim e o talvez têm lugar, até mesmo a asneira. Jamais porém o silêncio. De qualquer espécie. Entrar-se mudo e saír-se calado não representa nada nem ninguém, apenas a falta de ideias, o que, no mínimo, é grave.


É que, entre a asneira e o silêncio, venha o diabo e escolha.


Mas retomando a democracia como conceito e prática adquirida, ela consiste fundamentalmente não só no respeito do Outro, da diferença decorrente, mas na frontalidade do debate de ideias. Daí a perversidade do silêncio.


Ora um dos valores comuns à humanidade é a lealdade, enquanto ética comportamental, sobretudo para aqueles que se arrogam de representar os valores democráticos, mesmo neo-democráticos.


Daí que o Senhor Deputado Ng Kok Cheong, ao serem conhecidos o teor das suas cartas a Bruxelas, se tenha comportado de facto não só com deslealdade para com o hemiciclo, como demonstrou quão superficial é o seu conceito de democracia, e, como resultante, quão perigosa é a superficialidade de conceitos. Mais equívoco que convicção, que de boas intenções está o Inferno recheado.


O deputado Ng Kok Cheong saberá sem dúvida distinguir a premeditação do acidental, tanto quanto todos os presentes no hemiciclo de Macau o sabem.


É que, democracia e desenvolvimento não se desencadeiam exógenamente. Nem a Lealdade. Sobretudo numa cidade onde a Câmara tem um nome muito próprio.


Estarei naturalmente alinhado com a intervenção do Deputado Jorge Neto Valente, e aqui não se trata de extremar a questão por etnias ou línguas ou culturas. Há valores e práticas que sendo Universais me fariam alinhar consigo, se tivesse razão. É que a razão subjectiva que eventualmente teria, perdeu-a. Para toda a razão há uma moral. Não havendo uma moral e uma ética que sustente uma razão, esta esboroa-se.


Mas não é isso senão o indicador, a ponta do iceberg.


Em pleno final do Período de Transição, a emergência de sentimentos anti portugueses, sendo natural, quanto mais não seja para alguns protagonistas se erguerem em bicos de pés, não será decerto construtiva, sobretudo por alguém que diz perfilhar uma ideologia que vigora em Portugal, já consolidada.


É que, a hostilização não só não está consagrada no Acordo entre dois Estados, nem na Declaração conjunta, como é um acto gratuito e pouco inteligente, conducente porventura à nulificação, por falta de Quorum, da R.A.E.M. Aquilo que os indonésios estão a fazer aos chineses da Indonésia é condenável. Não se exerça pois, a prática da sevícia moral encadeada.


Tome-se o caso de Edmundo Ho, de Stanley Ho, de Ng Fok. Nenhum se proclama democrata, nenhum esconde as relações de amizade que mantém com portugueses, e, nem com isso deixa de ser menos patriota.


Há, pela ponta pascácia deste iceberg, a identificação de uma grave imaturidade por parte de alguns sectores mais jovens, confundindo por vezes o exercício autoritário do poder que lhes foi dado, com a autoridade que se ganha pela construção de uma estatura de autoridade moral. Talvez sejam os maus exemplos, talvez uma imatura necessidade de afirmação.


Porém, mais grave talvez que o criminoso acto de incendiar um carro, é o criminoso acto de apunhalar, pelas costas, colegas de hemiciclo. É que por vezes, em nome da moral, cometem-se as maiores imoralidades.


De resto, este incidente é um mal que vem por bem. Porque se percebe como anda a carruagem.


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